sábado, 8 de maio de 2010

O conceito de Justiça em Platão

      A filosofia em Platão segue uma orientação ética: ensina o homem a desprezar os prazeres, as riquezas e as honras. A finalidade do homem em Platão é procurar transcender a realidade, procurar um bem superior em relação àquele que perdeu. Para se atingir este bem o homem necessita viver numa "cidade perfeita" – A República: a Callipolis. O homem mais feliz é o justo; bem mais do que o injusto num mar de delícias.
      Não só em A República, como também na obra Fédon, Platão vai ensinar que para se conseguir a felicidade deve-se renunciar aos prazeres e as riquezas e dedicar-se à prática da virtude. O que vemos aqui é que em Platão os conceitos de felicidade e justiça caminham juntos. Podemos definir felicidade da seguinte maneira: seguir sua própria natureza; e a definição de justiça se dá da seguinte forma: fazer aquilo que é próprio de cada um. Este paralelo traçado entre os dois conceitos se concretiza dentro de A República ao estruturar sua cidade utópica.
      A grande problemática com o qual Platão inicia A República é falando sobre a justiça, Sócrates (personagem principal do diálogo) realiza sua fala buscando uma definição para justiça ou para o justo. Qual dessas atitudes cabe melhor ao cidadão: o justo ou o injusto, que tem vida melhor? Como já falamos a conclusão que cabe melhor é a da vida ao justo; para chegar a esta conclusão, Glauco conta a lenda do Anel de Giges. Um homem através do poder do anel poderia adquirir quase tudo o que desejasse, mas não possui o sentimento de justiça e vive com desculpas inúteis tentando sustentar uma situação que não é própria dele.
      A república platônica prevê um estado que não se trata de uma forma de governo aristocrata ou um governo eleito pela maioria. A forma de governo ideal seria aquela onde o poder é confiado aos mais inteligentes, aos filósofos, portanto temos uma sofocracia. Como Platão mesmo afirma "é preciso que os filósofos se tornem reis, ou que os reis se tornem filósofos". Aonde chegar com toda esta discussão. Se Platão afirma que a justiça é a base para todas as virtudes, o sábio é uma pessoa virtuosa, logo o sábio deve por excelência ser alguém justo. Voltando a questão das virtudes, vale lembrar que a alma humana possuí três virtudes: a temperança, a coragem e a sabedoria, sendo a justiça a base dessas três virtudes que seguindo a mesma linha constituirá três almas: a apetitiva, a irascível e racional que culmina numa distribuição harmônica de atividade na alma conforme a razão constituiria seguindo a virtude fundamental: a justiça. Este último argumento é o ponto central de ligação entre os conceitos de sabedoria e justiça.
      O conceito de dar a cada um aquilo que lhe é próprio assume uma postura central dentro da organização da república platônica. Existe baseado nesta teoria um sistema educacional a fim de orientar cada um segundo suas aptidões. Os que possuem sensibilidade grosseira devem-se dedicar à agricultura, a produção, ao artesanato e ao comércio; cuidando da subsistência da cidade. Os que possuidores da coragem constituem a guarda, a defesa da cidade, estes são os guerreiros. A última classe aponta é dedicada para aqueles que estudam a filosofia, disciplina que eleva a alma, afim de atingir o conhecimento mais puro e é a fonte de toda a verdade, a estes caberiam a administração da cidade. Portanto dentro desta visão fica claro que a atitude do justo é de estar trabalhando dentro de suas aptidões. Para se formar um estado justo é necessário antes de tudo, que seus cidadãos sejam justos. Jamais poderia se conceber um estado justo com pessoas injustas ou seu contrário. A formação da população vai determinar como será o estado. Assim se entende toda a estrutura educacional do estado platônico – cada um deve ser direcionado segundo suas aptidões, desenvolvendo as virtudes que lhe são próprias e adequadas para aquilo que estão desenvolvimento.
      Em Platão não encontramos uma definição fechada de justiça. Ele procura trabalhar o conceito de justiça envolvendo todo o comportamento do ser humano, portanto podemos dizer que o a definição de justiça em Platão assume um caráter antropológico. Ele analisa como seria o comportamento do homem justo e do homem injusto para se chegar a descrever suas virtudes, e a tipologia das almas, afim de determinar uma postura ética que direciona o homem para a conquista da sua felicidade dentro de suas aptidões constituindo por fim um estado justo e perfeito – A República.
Por Albio Fabian Melchioretto
REFERÊNCIA

PLATÃO, A República. Bauru: EDIPRO, 1994.
__________. Fedon. Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 2002.

Mito da Caverna

SÓCRATES - Figura-te agora o estado da natureza humana, em relação à ciência e à ignorância, sob a forma alegórica que passo a fazer. Imagina os homens encerrados em morada subterrânea e cavernosa que dá entrada livre à luz em toda extensão. Aí, desde a infância, têm os homens o pescoço e as pernas presos de modo que permanecem imóveis e só vêem os objetos que lhes estão diante. Presos pelas cadeias, não podem voltar o rosto. Atrás deles, a certa distância e altura, um fogo cuja luz os alumia; entre o fogo e os cativos imagina um caminho escarpado, ao longo do qual um pequeno muro parecido com os tabiques que os pelotiqueiros põem entre si e os espectadores para ocultar-lhes as molas dos bonecos maravilhosos que lhes exibem.
GLAUCO - Imagino tudo isso.
SÓCRATES - Supõe ainda homens que passam ao longo deste muro, com figuras e objetos que se elevam acima dele, figuras de homens e animais de toda a espécie, talhados em pedra ou madeira. Entre os que carregam tais objetos, uns se entretêm em conversa, outros guardam em silêncio.
GLAUCO - Similar quadro e não menos singulares cativos!
SÓCRATES - Pois são nossa imagem perfeita. Mas, dize-me: assim colocados, poderão ver de si mesmos e de seus companheiros algo mais que as sombras projetadas, à claridade do fogo, na parede que lhes fica fronteira?
GLAUCO - Não, uma vez que são forçados a ter imóveis a cabeça durante toda a vida.
SÓCRATES - E dos objetos que lhes ficam por detrás, poderão ver outra coisa que não as sombras?
GLAUCO - Não.
SÓCRATES - Ora, supondo-se que pudessem conversar, não te parece que, ao falar das sombras que vêem, lhes dariam os nomes que elas representam?
GLAUCO - Sem dúvida.
SÓCRATES - E, se, no fundo da caverna, um eco lhes repetisse as palavras dos que passam, não julgariam certo que os sons fossem articulados pelas sombras dos objetos?
GLAUCO - Claro que sim.
SÓCRATES - Em suma, não creriam que houvesse nada de real e verdadeiro fora das figuras que desfilaram.
GLAUCO - Necessariamente.
SÓCRATES - Vejamos agora o que aconteceria, se se livrassem a um tempo das cadeias e do erro em que laboravam. Imaginemos um destes cativos desatado, obrigado a levantar-se de repente, a volver a cabeça, a andar, a olhar firmemente para a luz. Não poderia fazer tudo isso sem grande pena; a luz, sobre ser-lhe dolorosa, o deslumbraria, impedindo-lhe de discernir os objetos cuja sombra antes via.
Que te parece agora que ele responderia a quem lhe dissesse que até então só havia visto fantasmas, porém que agora, mais perto da realidade e voltado para objetos mais reais, via com mais perfeição? Supõe agora que, apontando-lhe alguém as figuras que lhe desfilavam ante os olhos, o obrigasse a dizer o que eram. Não te parece que, na sua grande confusão, se persuadiria de que o que antes via era mais real e verdadeiro que os objetos ora contemplados?
GLAUCO - Sem dúvida nenhuma.
SÓCRATES - Obrigado a fitar o fogo, não desviaria os olhos doloridos para as sombras que poderia ver sem dor? Não as consideraria realmente mais visíveis que os objetos ora mostrados?
GLAUCO - Certamente.
SÓCRATES - Se o tirassem depois dali, fazendo-o subir pelo caminho áspero e escarpado, para só o liberar quando estivesse lá fora, à plena luz do sol, não é de crer que daria gritos lamentosos e brados de cólera? Chegando à luz do dia, olhos deslumbrados pelo esplendor ambiente, ser-lhe ia possível discernir os objetos que o comum dos homens tem por serem reais?
GLAUCO - A princípio nada veria.
SÓCRATES - Precisaria de algum tempo para se afazer à claridade da região superior. Primeiramente, só discerniria bem as sombras, depois, as imagens dos homens e outros seres refletidos nas águas; finalmente erguendo os olhos para a lua e as estrelas, contemplaria mais facilmente os astros da noite que o pleno resplendor do dia.
GLAUCO - Não há dúvida.
SÓCRATES - Mas, ao cabo de tudo, estaria, decerto, em estado de ver o próprio sol, primeiro refletido na água e nos outros objetos, depois visto em si mesmo e no seu próprio lugar, tal qual é.
GLAUCO - Fora de dúvida.
SÓCRATES - Refletindo depois sobre a natureza deste astro, compreenderia que é o que produz as estações e o ano, o que tudo governa no mundo visível e, de certo modo, a causa de tudo o que ele e seus companheiros viam na caverna.
GLAUCO - É claro que gradualmente chegaria a todas essas conclusões.
SÓCRATES - Recordando-se então de sua primeira morada, de seus companheiros de escravidão e da ideia que lá se tinha da sabedoria, não se daria os parabéns pela mudança sofrida, lamentando ao mesmo tempo a sorte dos que lá ficaram?
GLAUCO - Evidentemente.
SÓCRATES - Se na caverna houvesse elogios, honras e recompensas para quem melhor e mais prontamente distinguisse a sombra dos objetos, que se recordasse com mais precisão dos que precediam, seguiam ou marchavam juntos, sendo, por isso mesmo, o mais hábil em lhes predizer a aparição, cuidas que o homem de que falamos tivesse inveja dos que no cativeiro eram os mais poderosos e honrados? Não preferiria mil vezes, como o herói de Homero, levar a vida de um pobre lavrador e sofrer tudo no mundo a voltar às primeiras ilusões e viver a vida que antes vivia?
GLAUCO - Não há dúvida de que suportaria toda a espécie de sofrimentos de preferência a viver da maneira antiga.
SÓCRATES - Atenção ainda para este ponto. Supõe que nosso homem volte ainda para a caverna e vá assentar-se em seu primitivo lugar. Nesta passagem súbita da pura luz à obscuridade, não lhe ficariam os olhos como submersos em trevas?
GLAUCO - Certamente.
SÓCRATES - Se, enquanto tivesse a vista confusa - porque bastante tempo se passaria antes que os olhos se afizessem de novo à obscuridade - tivesse ele de dar opinião sobre as sombras e a este respeito entrasse em discussão com os companheiros ainda presos em cadeias, não é certo que os faria rir? Não lhe diriam que, por ter subido à região superior, cegara, que não valera a pena o esforço, e que assim, se alguém quisesse fazer com eles o mesmo e dar-lhes a liberdade, mereceria ser agarrado e morto?
GLAUCO - Por certo que o fariam.
SÓCRATES - Pois agora, meu caro Glauco, é só aplicar com toda a exatidão esta imagem da caverna a tudo o que antes havíamos dito. O antro subterrâneo é o mundo visível. O fogo que o ilumina é a luz do sol. O cativo que sobe à região superior e a contempla é a alma que se eleva ao mundo inteligível. Ou, antes, já que o queres saber, é este, pelo menos, o meu modo de pensar, que só Deus sabe se é verdadeiro. Quanto à mim, a coisa é como passo a dizer-te. Nos extremos limites do mundo inteligível está a ideia do bem, a qual só com muito esforço se pode conhecer, mas que, conhecida, se impõe à razão como causa universal de tudo o que é belo e bom, criadora da luz e do sol no mundo visível, autora da inteligência e da verdade no mundo invisível, e sobre a qual, por isso mesmo, cumpre ter os olhos fixos para agir com sabedoria nos negócios particulares e públicos.

Extraído de "A República" de Platão, Livro VII. 6° ed. Ed. Atena, 1956, p. 287-291.